As cidades são campos de batalha. O que acontece em suas ruas é reflexo das lutas que travamos em sociedade. Quando uma casa centenária vai ao chão, é uma batalha que perdemos. No domingo ela estava lá, na segunda foram tirando as telhas, abrindo buracos internos. Na terça, uma escavadeira punha abaixo mais de um século de histórias. Ao destruírem aquela casa, destruíram muito da nossa memória, e destruíram também um pouco do nosso sonho que construir uma cidade mais democrática, justa, bonita e aprazível.

Engana-se quem pensa que aqui falta cultura. Justo em Caicó, no coração do Seridó. Não, cultura não falta. Cultura temos muitíssima. É só olhar com mais atenção para os nossos costumes, para nossas manifestações culturais, nossas festas, música, artistas plásticos, artesãos, doceiras, bordadeiras. Não, não nos falta cultura da qual nos orgulhar. Acontece que no duelo entre a valorização de uma cultura local e o desejo por uma globalização esterilizante, quase sempre saímos perdendo. E se desdenham do que aqui há, não é por outra razão senão a de sempre termos sido ensinados que destruir o passado é a única forma de desenvolvimento. Não nos ensinaram que nossa própria cultura era tão importante quanto qualquer outra, de qualquer lugar, de modo que aquilo que vêm de fora sempre nos enche de ilusão. Nessas trincheiras, aqueles que vão defender essa visão equivocadamente desenvolvimentista há muito tempo seguem sendo maioria. Envenenam tudo com suas visões restritas. Não nos dão possibilidade de nos enxergarmos como sujeitos culturais importantes. Pensam que aqui não há cultura, não há o que se preservar.
Seria aquela casa importante apenas por ter ali vivido o tal coronel Celso Dantas? Vocês vão me desculpar, mas eu nem sei quem é esse sujeito. Nem sei se era boa pessoa ou não. Deveria saber da sua história? Talvez. Mas a verdade é que o que se perde não é a antiga casa de um senhor que possa ter sido importante na história da cidade. O que se perde é uma referência visual da cidade com a qual todos nós nos relacionávamos. Se perde um registro de uma época do desenvolvimento da cidade. Menos importaria o nome. Mais importava olhar para trás e entender como a cidade e a sociedade se desenvolveram. Mais importava aquela visão que tínhamos na lateral da casa, no alto da Avenida Coronel Martiniano, quando descíamos junto à procissão de Sant’Ana. Mais importava que estivesse ali, no nosso dia a dia, no nosso andar pela cidade, uma referência às peculiaridades da história da cidade, que se fundem com as nossas histórias.
As cidades são campos de batalha, mas também são campos de afeto. Nossas raízes, nossa identidade, o lugar de onde viemos, tudo isso é importante, por mais que haja um exército querendo dizer o contrário. As ruas e construções que dão à cidade singularidade, pois contam sua particular expansão e história, são a terra onde plantamos esses afetos, o cenário no qual podemos identificar nossa identidade. Se elas mudam, corremos o risco de perder o lugar onde fincar raízes. Cada batalha que perdemos, perdemos um pouco dos indicativos de quem somos e de onde viemos.
Para pensar desenvolvimento no século XXI é preciso que esse desenvolvimento seja sustentável, o que inclui respeitar as histórias, os espaços tradicionais, e os nossos lugares de afeto. É preciso respeitar à cultura local, que, por mais que joguem bombas de falaciosa globalização tentando impedir que vejamos, temos cultura e muita. Tivemos uma baixa, mas não perdemos a guerra.
Meu desejo é que cada um que se indignou com a demolição do casarão, possa começar a enxergar que as demais construções antigas da cidade também fazem parte do nosso arsenal de histórias e afetos. E que cada um que acreditou na mentira de que isso é desenvolvimento, que possa refletir se o desenvolvimento de uma cidade passando por cima dela própria, pode ser considerado desenvolvimento, ou é destruição. É possível crescer sem destruir o que já crescemos até aqui.
Lívia Nobre de Oliveira
Caicoense
Arquiteta e Mestre em Arquitetura e Urbanismo.
Pesquisadora do campo do patrimônio cultural.
Escreveu a Revista Arcaicó sobre patrimônio caicoense e boas práticas de intervenção. Disponível em www.revistaarcaico.com
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