Boneco Monstro, da bonequeira Zildalte. Fonte: acervo de Zildalte
Texto de Márcia Rossana de Oliveira – Arquiteta e aprendiz de bonequeira
Este artigo aborda a participação da mulher na brincadeira do Teatro de Bonecos Popular do Nordeste, no RN conhecido como João Redondo. Fala da atuação da mulher como criadora de bonecos, pesquisadora do teatro de bonecos, como brincante e como personagem desta brincadeira. Este artigo faz um recorte espacial e temporal, visto que o patrimônio imaterial é vivo e dinâmico, se transforma o tempo inteiro. Trata-se aqui de observação em evento Encontro de Bonecos e Bonequeiros do Teatro de João Redondo no RN nos anos de 2018 e 2019 e de relatos das bonequeiras. O Teatro de Bonecos Popular do Nordeste, também intitulado Cassimiro Coco, Babau ou Mamulengo, no RN é conhecido como João Redondo. Uma expressão popular que utiliza bonecos manipulados, com falas por trás de toldas coloridas, muitas vezes criados pelas mesmas mãos. Esses artistas trazem nestas brincadeiras as crendices, lendas, mazelas e críticas da sociedade. Dali saem frases e gestos que produzem o riso e a transformação nas expressões faciais de quem assiste o espetáculo.
Esse mundo mágico, para o qual as pessoas são transportadas por minutos, onde esquecem o cansaço do trabalho e as preocupações, passa a existir no momento em que a tolda é armada, o microfone(quando tem) é instalado e entra em cena aquele personagem colorido, falante e com expressão muito característica. O boneco é realmente uma figura quase viva. Tem personalidade, tem humor (bom ou mau) e com suas “tiradas” modifica o ambiente. Seja criança, adulto ou idoso, todos sentem algo, o teatro traz à tona lembranças ou descobertas de sentimentos diversos.

O Teatro de Bonecos no RN acontece nos lugares mais incríveis e distantes do interior do estado e nos centros urbanos. Por vezes é no sol escaldante do interior da caatinga onde ele começa. No galho seco do mulungu ou outra madeira no chão. Esse galho é coletado, posto num saco nas costas do vaqueiro, a pé ou a cavalo, e somado a muitos outros chega no alpendre de casa ou sob uma sombra de árvore. Ali vai ficar até que surja o tempo para esculpir ou até que seja vendido ou doado para aquele mestre bonequeiro que já fez de sua arte uma referência. São as mãos mágicas e calejadas desse mestre, que vai transformar esse pedaço de madeira, leve, de baixa resistência, de coloração marrom amarelada, quase bege, a partir de alguns cortes, em uma madeira marcada, de forma quase grotesca, em algo que só ele mesmo enxerga uma cara. Mas… com uma série de ferramentas, muitas vezes por ele mesmo criadas, ele vai moldando, arredondando, escavando, alargando, reduzindo… Com paciência, entre uma conversa e outra, às vezes, entre um “brejeiro”(charuto artesanal) e outro, vai criando uma feição, uma imagem que vai ser de uma criatura que já existe em sua imaginação.

Outras vezes esse caminho vem através de jornais velhos coletados, papéis que um dia foram madeiras, passam por processo de picotagem, mistura com cola e água e formando uma massa que vai tomar forma nas mãos sábias de um mestre ou mestra que cria esta cara, que será pintada e vai adquirir as expressões que o(a) criador(a) inventou naquele dia ou que estava em seu imaginário desde criança, quando assistia às brincadeiras de seu avô, ou ouvia as histórias contadas pelos mais velhos.
A criação do boneco às vezes leva dias… é um molda daqui, corta dali, lixa mais um pouco, espera a tinta secar, cola um acessório, amassa, dobra, puxa, costura… e então nasce. Vai brincar nas toldas mundo a fora, animando gente de realidades tão diferentes.
Os eventos onde foram observadas estas impressões do cenário do Teatro de Bonecos realizaram-se na cidade de Currais Novos, no Seridó Potiguar. Reúne cerca de 30 mestres e mais alguns aprendizes e pesquisadores que os acompanham, absorvendo esse conhecimento direto da fonte. O público que abrange é em torno de duas mil pessoas e acontece em três dias de muitas brincadeiras, debates, descobertas, trocas de experiências, encontros, reencontros, música, alegria, apresentações e homenagens.
A atuação da mulher neste universo tradicionalmente masculino acontece de diversas formas. Iniciando com a ajuda na confecção da roupa do boneco, auxílio na criação de um personagem ou com a fabricação do próprio boneco, vai tomando seu espaço com manipulação e fala.

Neste ponto, cabe falar das dificuldades que estas mulheres enfrentam, hoje menos que ontem, para terem seu espaço. Dificuldades observadas e relatadas por elas, como a constatação e frustração de não ser anunciada pelo cerimonialista que só mencionou o homem da companhia, de não ser contabilizada como mestra, de não ter o mesmo tempo de apresentação, ou de ter seus bonecos discriminados por não serem de madeira.
Na brincadeira, também ocorre uma problemática que tem sido debatida nos Encontros. Os temas das brincadeiras por vezes abordam a mulher de forma discriminatória ou com práticas alusivas ao abuso ou agressão. Trata-se de brincadeiras muito antigas com práticas que já não se admitem, e por mais que os mestres não concordem com as mesmas, na hora do espetáculo, se empolgam e esquecem, acabando por repetir mecanicamente a manipulação e fala que se fazia antigamente e todos achavam engraçado. Há que se lembrar que no teatro de bonecos são permitidas linguagem e gestual agressivos que fazem parte deste nicho. Falas populares, sarcásticas, irônicas, críticas que fazem piadas de situações reais e atuais. Mas para as mulheres não é engraçado quando ela é o motivo da piada. Então este debate segue cada vez mais adquirindo força e vem mudando essa característica, uma capacidade do patrimônio imaterial, a mudança, a transformação em sintonia com seus detentores.
Neste sentido o trabalho de pesquisadoras deste Bem Registrado, traz grande contribuição. Levantando este tema em debates e palestras nos Encontros, como é o caso de Zildalte Macedo, ou mostrando a arte de grandes mestras, como é o caso de Graça Cavalcanti, que escreveu sobre a arte de mestra D. Dadi, relatando sobre a memória, o brinquedo e a brincadeira dessa grande mestra.

Nessa perspectiva, faz-se importante observar que para falar no geral sobre a mulher bonequeira no RN, se faz necessário registrar, inicialmente, a presença de Dadi, mestra de Carnaúba dos Dantas/RN, que apresenta seu diferencial no universo do Teatro de Bonecos, representado historicamente por uma genealogia masculina, salientado pelo seu dom em provocar o riso nas pessoas, perante bonequeiros do Rio Grande do Norte. Teve seu primeiro contato com a brincadeira na infância, quando sua avó a levava para assistir a brincadeira do mestre Bastos. Aos 50 anos, com os filhos criados, viu na televisão uma receita com bonecos em papel marche e, a partir daí, começou a receber encomendas para fazer ex-votos, só que em madeira. Esta era a referência inicial de Dadi –fazedora de milagres–, o que parecia confirmar uma tradição seguida pelos santeiros em geral.Mas, Dadi, transgride também essa regra. Ao invés de se tornar santeira, envereda por outro caminho: do lúdico, do riso, da sátira, do teatro, esculpindo seus bonecos para uma primeira encomenda: dois pastoris para pesquisadores da UFPE, que visitavam a Região do Seridó. Assim, no Ano de 2002, seu nome foi inserido no universo do teatro de João Redondo do Rio Grande do Norte, inspirando homens e tantas outras mulheres a entrarem nesse universo brincante e, mesmo após seu encantamento, em janeiro de 2021, continua sendo muito amada e reverenciada por suas multiplicadoras, como também, referenciada por pesquisadores desse saber-fazer, tanto por sua singularidade no ato de esculpir os bonecos, na exímia pintura que revela os traços dos calungas, pela costura das indumentárias, do acréscimo de cabeleiras coloridas, como também por seu destaquenas apresentações para públicos diversos, com personagens já consagrados na historiografia, tais como o Capitão João Redondo e Benedito, criando outros para atualizar o cenário de nossa Cultura Popular.

Por outro lado se destacam as criaturas confeccionadas por Lydia Brasileira, com sua habilidade nata, criatividade e grande inventividade para extrair da matéria-prima papel, fantásticas e realistas esculturas de bonecos em forma animais ou personificações humanas. D. Lydia motiva e estimula outras mulheres na confecção de seus próprios bonecos. Um exemplo deste fato é a Catarina Calungueira, que se inspira na arte desta mestra para fazer seus calungas. Catarina que iniciou na companhia Folguedo Folgado, de seu companheiro Ricardo Guti, assessorando, dando apoio na manipulação, depois fazendo algumas falas femininas, sentiu a necessidade de fazer sua própria brincadeira, com temas próprios. Aqui transcrevo uma fala desta brincante, ao perceber um fato interessante.

“Percebi que nas primeiras apresentações fazia uma voz, propositadamente mais fina e aguda que a minha, numa imitação do que os brincantes homens se esforçam para fazer a voz feminina. Mas eu sou mulher, não preciso usar este recurso, já tenho a voz feminina” Catarina
Isso retrata o quanto este ambiente é masculino, a própria mulher segue inconscientemente repetindo o padrão que vê, até perceber e se assumir como artista, como brincante e bonequeira que é.
Eu aqui relato estas vivências que observei nos Encontros dos Bonecos e Bonequeiros do Teatro de João Redondo do RN em 2018 e 2019, onde despertei para este mundo mágico, sendo acolhida por estes mestres muito queridos que me mostraram e resgataram em mim um conhecimento que estava adormecido. Lembrei das “bonecas de pano” que minha avó e minha mãe faziam para mim e minha irmã quando crianças. Foram voltando à minha memória as muitas tardes de brincadeiras onde estas bonecas assumiam as mais variadas personagens, desde “mocinhas” a vilãs nas histórias que criávamos de acordo com as características que observávamos nas bonecas. Outras lembranças resgatadas foram as apresentações teatrais na sala de casa ou na calçada, que chamavam a atenção dos vizinhos. Colocávamos cadeiras para eles assistirem nossos espetáculos. Essas brincadeiras de criança eram incentivadas por nossa avó materna e nossos pais, que nos contavam histórias, músicas e das apresentações de bonequeiros, boi de reis, chegança, pastoril, cordel e tantas outras expressões culturais que eles vivenciaram ou assistiram.
Minha avó fazia nossas bonecas com uma riqueza de detalhes que chegava aos dedinhos, além das formas sinuosas do corpo feminino reproduzidas em tecido, linha e agulha. Minha mãe fazia as bonecas e as filhas destas, bonecas que nós pedíamos, “sob encomenda”. Até a Emília do Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato, nós tínhamos uma versão.
Ainda estou em processo de resgate desta arte da minha família e de aprendizado ao lado desses tantos mestres e mestras que me ensinam com tanta generosidade. Mas espero poder realizar e contribuir de alguma forma para o fortalecimento e continuidade desta arte no RN. Inspiro-me em Catarina, Zildalte, Dadi, Graça, Lourdinha, Lydia e todas as mulheres bonequeiras que eu possa assistir, ler ou tomar conhecimento de sua arte. Inspiro-me na criatividade de minha mãe, de minha avó, e na minha ancestralidade.

A participação feminina no Teatro de Bonecos traz abordagens e contextos mais igualitários, personagens femininas mais participativas, mais atuantes. Essa transformação vem ocorrendo no RN e uma prova disso é a Rede de Mulheres Bonequeiras que se formou ainda em 2020. Em seguida ocorreu o I Festival de Bonequeiras do RN que ocorreu de 01 a 06 de fevereiro de 2021. As mulheres no TB cada vez mais vêm se destacando e se fortalecendo, caminhando para mais reconhecimento e empoderamento

Texto de Márcia Rossana de Oliveira arquiteta e aprendiz de Bonequeira; fotos dos acervos de bonequeiras potiguares
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